Entre a Dona Neusa e a pequena Maria

Parti para o Hospital das Clínicas da Unicamp para o último turno de estágio em Capelania. Entrei na sala da Capelania, onde fui informado de que naquele dia visitaríamos uma das muitas UTIs. Colocamos os devidos aparatos e, ao passar pela porta da UTI, deparamo-nos com cerca de oito pessoas chorando. O capelão me explicou que provavelmente alguém estava para falecer, pois os parentes são chamados nestes últimos momentos. Entramos no quarto onde estava Dona Neusa entre tubos e aparelhos. Oramos por ela e por alguns outros parentes que estavam no quarto. Saímos do quarto, em direção aos outros familiares que estavam no corredor, orientamos todos à sala de apoio familiar e, enquanto dávamos as mãos, o enfermeiro chegou para dar o aviso, mas ele foi sensível e sábio. Entrou na roda, deu as mãos e oramos juntos, antes do aviso: Dona Neusa se foi. Para o enfermeiro, mais um dia na UTI. Para os parentes, a despedida dolorosa de uma matriarca que reuniu mais de dez pessoas que a amavam em um corredor da UTI. Para mim, um capelão em formação, uma experiência dura, real, pedagógica.

Orei por alguns outros pacientes e parti direto para a Capela do Hospital. Sentei em um dos bancos para chorar a morte de Dona Neusa que acabara de conhecer. Após alguns minutos de oração, percebi a entrada de uma pequena garota, entre 5 e 7 anos, acompanhada de sua mãe, que carregava travesseiro e cobertas debaixo do braço. A menina se assentou em um dos bancos, olhou para a cruz na parede da capela e ficou de olhos abertos, em silêncio. Perguntei à sua mãe se estavam de alta. Ela respondeu positivamente e disse que a pequena fez questão de ir até a Capela para agradecer. A pequena Maria havia sobrevivido! Estava indo para casa! Oramos juntos. Agradecemos por sua recuperação. A dor não a levou para longe da Capela, pelo contrário, a dor a levou para lá. Uma pequena vida que entendeu, do jeito mais difícil, o dom da vida e quem a deu.

Essas duas experiências juntas me trouxeram à tona um conceito que tenho elaborado há alguns meses: o nosso lugar de tensão entre o Espanto e o Encanto. Esse é o nosso lugar! Não vivemos no espanto, nem no encanto. Provamos de cada um deles, ora aqui, ora lá, porém, nossa vida se desenrola na tensão entre um e outro. Sorrimos para o encanto, temendo a vinda do espanto, e provamos do espanto, esperançando o retorno do encanto. Essa é a nossa condição. Vivemos entre a pequena Maria e Dona Neusa. Oramos por ambas e estamos com ambas e somos ambas com elas. Desta forma, a Capelania me reforçou o que eu já rascunhava: o trabalho do capelão e do pastor deve se dar exatamente aí, nessa tensão entre o espanto e o encanto. Nesta tensão, somos com o outro, companheiro de risos e de choros, de trevas e de luz. Toda palavra pastoral, todo estudo, todo conselho deve partir daí, desse lugar e de nenhum outro.

Sobre este meu prematuro conceito, conto com a ajuda do grande teólogo Walter Brueggemann, que muito falou sobre esse lugar de tensão:
“Com incrível coragem, o sofrimento do que fala é deixado irresolvido no trono para a deliberação de Deus. O que fala não pisca ou hesita, não é intimidado, não aceita a responsabilidade pelos problemas e não propõe saída. O problema, insuportável como é, é deixado lá. E, se deve haver um próximo movimento, ele deve ser da parte de Deus. Deus pode desejar estar “acima da briga”, mas esse interlocutor puxa Deus “para dentro da briga”.”


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Um comentário em “Entre a Dona Neusa e a pequena Maria

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  1. Paz do Senhor irmão

    Este texto representou para mim um grande conforto , pois em 28/12/24 passei por esta experiência

    com a perda de minha maezinha. É maravilhoso poder entender que Deus nunca nos desampara,

    Fique em Paz e sob as Bençãos de Deus.

    mesmo nos momentos mais dolorosos.

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