Laborar é um verbo pouco utilizado atualmente. Ele foi substituído pelo muito usado “trabalhar”. Segundo a renomada filósofa Hannah Arendt, não é à toa a existência de duas palavras distintas em diversos idiomas. Arendt defendeu uma profunda diferença entre “trabalho” e “labor” em sua obra “A Condição Humana”.
Por “trabalho”, Arendt coloca os serviços que desenvolvemos como meio de troca. Trata-se, portanto, da profissão que desempenhamos e por meio da qual garantimos nosso sustento nesse sistema de trocas de serviços e produtos que nós mesmos criamos. Essa teia de comercialização abrange tudo e todos, que nomeamos de mercado.
Por “labor”, Arendt coloca aquilo que fazemos de modo inato porque faz parte daquilo que somos. São, portanto, as atividades inerentes à condição humana. Cozinhamos e comemos porque precisamos e desejamos fazer isso. Relacionamo-nos porque queremos e porque isso mantém nossa existência como espécie.
Em sua obra, Arendt acendeu um alerta social e político sobre a supervalorização do “trabalho” em detrimento do “labor”. As atividades que são meios de troca de produtos se tornavam mais importantes do que as atividades que nos definem como seres. Esse “labor”, hoje, apenas serve ao “trabalho” mercadológico que realizamos.
Com todo respeito ao trabalho de Arendt, gostaria de pegar emprestado esses conceitos para trazê-los à dinâmica da igreja cristã atual, seja ela histórica, pentecostal ou outra. Por “labor”, quero trazer tudo aquilo que chamo de dimensão do aprisco. A igreja como ajuntamento de fiéis que se cuidam, que são ovelhas e pastores guiados pelo Sumo Pastor do rebanho. Neste ajuntamento, louvamos a Deus e aprendemos a viver conforme Sua vontade revelada. Ali, aprendemos a ser o corpo de Cristo, no desafio da unidade em meio à diversidade. Nosso “labor”, portanto, é fazer coisas de crente: orar, estudar a Bíblia, cuidar uns dos outros e tudo que nos define como ovelhas.
Por “trabalho”, quero trazer tudo aquilo que entendo como dimensão de pesca. A igreja como agência do Reino de Deus, comissionada pelo Senhor Jesus à pescaria de homens e mulheres. Ali, aprendemos o ofício da pesca, com suas técnicas e estratégias, e somos guiados para fora do aprisco, para a voragem do mar do mundo, onde pessoas se encontram longe do consolo e proteção do Pastor. Nosso “trabalho”, portanto, é cumprir a função de embaixadores do Reino de nosso Senhor, sendo agentes que vão além da dimensão educacional e hospitalar do aprisco ao encarar a dimensão produtiva e operária da pesca.
Minha crítica é que, infelizmente, temos tido uma grande dificuldade em exercer estas duas dimensões da Igreja. Alguns líderes ignoram o aprisco, moldando igrejas que veem a pesca como ofício que se resume a uma estatística de crescimento e lucro, enquanto deixam as suas ovelhas desnutridas de doutrina e consolo.
Outros líderes ignoram a pesca, moldando igrejas que veem o aprisco como “labor” suficiente e cômodo, engordando suas ovelhas com doutrina e comunhão, deixando-as completamente despreparadas para a grande comissão. Crentes que possuem apenas a perspectiva escolar da igreja, perspectiva que não os move em direção à formação e ao trabalho no mar.
Em uma igreja que ignora o aprisco, um jovem participa de cultos muito bem preparados nos quais ele desfruta de uma experiência rica, porém, que se encerra ali. Após alguns cultos, ele se torna parte das estatísticas, mas não é acolhido em um aprisco que caminha com ele em um processo de discipulado. Este jovem foi captado como um novo “lead” em um funil de vendas. Todos os recursos da pesca foram usados e abusados para atrair esse jovem, porém, quase nenhum recurso é usado para pastoreá-lo.
Em uma igreja que ignora a pesca, um jovem participa dos cultos e é acolhido pelo aprisco que o abraça. Após algum tempo no aprisco, este jovem é uma ovelha que ama o aprisco, o que é bom, porém a dinâmica do aprisco basta para ele, até porque em momento algum este jovem é preparado para o mar. Aliás, o mar para ele é a vida secular, sua carreira, seus estudos, etc. Nesta perspectiva, o mar é visto como um lugar mundano e perigoso onde ele deve apenas ter uma atitude defensiva, mas de maneira nenhuma expansiva e intencional, pois nunca foi preparado para este fim. Amanhã, este jovem será um dos líderes dessa igreja e ensinará os próximos jovens apenas sobre a dimensão do aprisco.
Para concluir, quero fazer um exercício de imaginação idealista: Um jovem adentra uma igreja a convite de um amigo que é ovelha e pescador. Nesta igreja, o jovem é absorvido pela dimensão do aprisco e ali encontra edificação na comunhão e na ponderada doutrina, que é o genuíno “labor” dessa igreja. Porém, o jovem não entende essa dimensão como propósito final da igreja, pois ali ele também é capacitado para o “trabalho” do Reino em sua dimensão de pesca. Ele é, então, movido a compartilhar o Evangelho com naturalidade na rotina ordinária de sua vida, pois ele sabe que compartilhar o Evangelho é seu mais importante ofício nessa vida passageira. Nesta igreja, há “labor” que abraça esse jovem e lhe proporciona os meios de Graça públicos reservados a toda ovelha de Cristo. Nesta igreja, há “trabalho” que capacita e envia esse jovem ao mar para pescar ou, como em outra metáfora de Jesus, para olhar os campos que já estão prontos para a colheita. Entre a dimensão do aprisco e da pesca, essa igreja escolheu ambas.
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