Uma resposta cristã contemporânea
Caro Freud, li seu texto – O Futuro de uma ilusão – e gostaria de registrar algumas palavras sobre a experiência desta leitura a partir da ótica de um cristão reformado que vive quase cem anos após a data da publicação desta obra. Assim como seu interlocutor, o reverendo Oskar Pfister, aprecio muito seu trabalho e, portanto, arrisco estas poucas e singelas linhas em atitude pacífica e de admiração, por me entender beneficiado racionalmente e até religiosamente por seu trabalho, pois, por estranho que possa parecer, seu texto contribuiu para depurar minha fé, assim como o trabalho excelente de seu amigo Jung. Como Pfister, prefiro ler um descrente sensato do que mil crentes insensatos.
Como cristão reformado, me atrevo a escrever estas linhas, pois, como você mesmo disse: “a psicanálise não é nem religiosa nem irreligiosa. É um sentimento sem partido, do qual podemos nos servir para alívio de nossos sofrimentos”. Além disso, fico tranquilo para escrever porque apesar da minha fé, tenho um apreço comedido pelo círculo cultural evangélico ao qual pertenço, o que me impede de ser um defensor ferrenho desta cultura e me dá liberdade para falar da fé, despido de um discurso de trincheira que é típico desta cultura. Não compartilho, portanto, da satisfação narcísica do ideal cultural que você se refere em seu texto.
Gostaria de começar com esta citação abaixo, a qual concordo integralmente:
“Tal como para a humanidade em seu todo, também para o indivíduo a vida é difícil de suportar. Uma cota de privações lhe é imposta pela cultura de que faz parte; outra porção de sofrimento lhe é causada pelas demais pessoas, seja a despeito dos preceitos da cultura, seja em consequência das imperfeições dela. A isso se acrescentam os danos que a natureza indomada traz.
[…]
Mas o desamparo dos homens permanece, e, com ele, os deuses e o anseio pelo pai. Os deuses conservam a sua tripla tarefa: afastar os pavores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do destino, em especial como ela se mostra na morte, e recompensá-los pelos sofrimentos e privações que a convivência na cultura lhes impõe.”
Sim, a vida é difícil de suportar. Sim, o desamparo dos homens permanece. Desamparo o qual eu já experimentei emocionalmente e fisicamente. Desamparo que me levou e que leva tantos de nós àquela angústia existencial fria e sem rosto. Desamparo que nos leva à criação de um “patrimônio de ideias” para nos proteger dos perigos e do destino. Sim, a religiosidade que nos ampara com significado e propósito.
A partir daqui, não caminho mais paralelo ao seu pensamento, pois você deixou claro que sua intenção não é prosseguir investigando o desenvolvimento da noção de Deus, mas justamente este “patrimônio de ideias”. Não caminho mais contigo porque é, precisamente, a noção de Deus que eu persigo e me detenho para investigar, fazendo apenas uso de um patrimônio de ideias. Porém, antes de nos distanciarmos, gostaria de citar mais uma porção do seu texto, a qual também compartilho e que gostaria de usar para a seguir meu caminho:
“Já sabemos que a apavorante impressão do desamparo infantil despertou a necessidade de proteção – proteção através do amor –, que é satisfeita pelo pai; a percepção da continuidade desse desamparo ao longo de toda a vida foi a causa de o homem se aferrar à existência de um outro pai – só que agora mais poderoso. Através da ação bondosa da Providência divina, o medo dos perigos da vida é atenuado; a instituição de uma ordem moral universal assegura o cumprimento da exigência de justiça que com tanta frequência deixou de ser cumprida na cultura humana; o prolongamento da existência terrena através de uma vida futura prepara o quadro espacial e temporal em que essas realizações de desejo devem se consumar. As res-
postas de questões enigmáticas para a curiosidade humana, como as da origem do mundo e da relação entre o físico e o psíquico, são elaboradas sob os pressupostos desse sistema; para a psique individual, significa um imenso alívio que os conflitos da infância que se originam do complexo paterno, nunca inteiramente superados, lhe sejam tomados e levados a uma solução aceita por todos.”
Aqui, você fez uma síntese brilhante de sua proposta de ilusão e depois afirma que essa ilusão não é necessariamente um erro, mas somente o fruto dos desejos humanos. Entendi bem o seu ponto e concordo. Desejar viver bem não é um erro! Desejar um Pai soberano que não se mostre incapaz como eu e os meus pais naturais, também não é um erro. Pelo contrário, desejar que este Ser exista e que Ele supra meu desamparo e amenize a minha fria angústia é, acredito eu, um belo sinal de sanidade emocional e é aqui que, finalmente, nos distanciamos. Você, na sua busca pela desconstrução desse patrimônio de ideias ilusórios e eu, em outra direção, em busca da noção de Deus que em nada te interessa.
Daqui onde estou, no século XXI, muitas décadas depois do seu texto, posso ver, não com alegria, que o tal patrimônio de ideias que você lutava por destronar, continua não fazendo a maioria dos homens felizes. Porém, preciso te dizer que a sua esperança futura também foi frustrada, pois o homem, apesar do seu trabalho virtuoso, continua um ser débil, dominado pelos seus desejos impulsionais. Também não há um que tenha sido criado sóbrio, como você esperançava. Para sua tristeza, aumentaram tanto as ilusões religiosas, como também as ideológicas, entre os nobres e os plebeus, entre os cultos e os incultos. Contrariando sua tese, a depravação humana, bem trabalhada pela fé cristã reformada, tem resistido bravamente à razão e à experiência que você tanto depositava sua fé. Portanto, aquilo que você chamava do futuro de uma ilusão, voltou-se contra você mesmo, como o presente de sua própria ilusão.
Para finalizar, gostaria de confessar minha fé em Cristo Jesus, mas farei isso a partir de uma maravilhosa porção de sua obra:
“Que lhe deve importar a miragem de um latifúndio na Lua, de cujas colheitas jamais alguém viu coisa alguma? Na condição de pequeno lavrador honesto nesta Terra, ele saberá cuidar de sua gleba de maneira que ela o alimente. Por não colocar mais suas expectativas no além e concentrar todas as forças liberadas na vida terrena, provavelmente ele consiga que a vida se torne suportável para todos e que a cultura não oprima mais ninguém. Então, com um de nossos companheiros de descrença, ele poderá dizer sem pesar: E o céu deixaremos aos anjos e aos pardais.”
Caro Freud, pela ciência e pela experiência chegamos à Lua e temos ido além. Na condição de pequeno lavrador, temos destruído nossa gleba. Por concentrarmos todas as nossas forças na vida terrena, temos deixado muitos de nós sem alimento, por pura ganância materialista. A vida tem se tornado mais insuportável para muitos e a cultura nos oprime, mas agora não só pela repressão dos impulsos, como também pela imposição da alta performance egoica e egoísta de muitos companheiros de crença e de descrença.
Sim, muitos seguiram seus conselhos e deixaram o céu para os anjos e pardais, porém, alguns insistem em voar com os pardais. Alguns de nós, como eu, insistem em crer na voz do Rabi que viveu na menosprezada Nazaré, a dizer: “Não tenham medo; vocês valem mais do que muitos pardais!”. Alguns de nós fomos encontrados pela palavra deste mestre judeu que foi crucificado por chamar o Deus soberano dos judeus de Abba. Esses se sentem amparados como pequenos pardais à sombra das asas deste Pai que nos conforta em meio a este sentimento de desamparo e angústia que vivemos neste século. Como disse o Apóstolo Paulo, esses pardais podem repetir: “… temos esse tesouro em vasos de barro, para mostrar que o poder que a tudo excede provém de Deus, e não de nós. De todos os lados somos pressionados, mas não desanimados; ficamos perplexos, mas não desesperados; somos perseguidos, mas não abandonados; abatidos, mas não destruídos. Trazemos sempre em nosso corpo o morrer de Jesus, para que a vida de Jesus também seja revelada em nosso corpo.” Este é o presente de uma confissão que se mostra viva, ativa e embativa ao meu id, meu ego e meu superergo.
“Até o pardal achou um lar e a andorinha um ninho para si, para abrigar os seus filhotes, um lugar perto do teu altar, ó Senhor dos Exércitos, meu Rei e meu Deus.” – Salmos 84:3-4
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